sábado, 22 de janeiro de 2011

Uma noite na Ilha do Presídio

      Assim que o barco atracou na Ilha das Pedras Brancas, mais conhecida como Ilha do Presídio, às 20h50min da última quinta-feira, um senhor de 70 anos sentiu um suor frio percorrer o corpo. Pela primeira vez, retornava ao local onde esteve preso por 90 dias e foi torturado, na década de 1960, durante o regime militar.
      – Vi horrores aqui – conta o aposentado, que prefere não se identificar, com os olhos marejados.
      Era uma das 48 pessoas que atravessaram o Guaíba, em uma viagem de 25 minutos, para assistir à estreia de Viúvas, Performance sobre a Ausência – Trabalho em Andamento, da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz. Encenada até o dia 29 na ilha que guarda as ruínas de um presídio (desativado em 1983), a 2,5 quilômetros de Porto Alegre, a peça evoca os desaparecidos durante as ditaduras na América Latina.
      O ponto de saída do público foi a Usina do Gasômetro, na Capital, onde, às 19h, há a distribuição de senhas para o espetáculo com entrada franca. Às 20h em ponto, um ônibus levou os espectadores para o Sava Clube, na Vila Assunção, de onde zarpou o barco.
      Estavam lá casais, grupos de amigos, jovens, adultos e idosos de Porto Alegre, Florianópolis, Rondônia, Canadá e Espanha – muitos de férias. Alguns em busca de um passeio por um local raramente visitado, outros movidos pelo novo espetáculo de um grupo de teatro referencial há 33 anos, e outros, ainda, atrás de um acerto de contas com o passado. Ou todos os motivos juntos.
      Na viagem, sem que ninguém suspeitasse, um ator já estava em meio aos espectadores, com figurino discreto. A poucos metros da ilha, Eugênio Barboza se levantou para dar início ao espetáculo, interpretando um escritor no exílio – fato que remete à biografia do autor da peça, o chileno Ariel Dorfman, que a assina em parceria com o norte-americano Tony Kushner.
      A primeira imagem que o público tem da ilha é de Sofia (Tânia Farias) sentada em uma pedra, como quem espera por alguém. Ela é uma das mulheres de um povoado cujos pais, maridos e filhos estão desaparecidos. Contrariando as demais, Sofia se recusa a ficar calada frente aos engravatados de metralhadora em mãos, comandados pelo Capitão (Paulo Flores), que controlam o local. O público tem a oportunidade de percorrer, com os personagens, as escadarias que dão acesso ao presídio, o interior com suas celas hoje vandalizadas, a área verde que circunda a construção, suas ruínas e um espaço com vista para o Guaíba.
      Em cena, os 24 integrantes do elenco apresentam o frescor de um grupo que acredita no teatro como se fosse a primeira vez. Emocionante e surpreendente, Viúvas culmina com a festa da colheita, cena em flashback em que os personagens do povoado cantam, dançam e servem ao público vinho e pão. Esse é o teatro ritual do Ói Nóis Aqui Traveiz. As atuações são cativantes, e a iluminação faz o local parecer ter sido criado para o espetáculo, e não o inverso.
      Com a peça em andamento, um espectador por vezes se desviava do foco da ação para caminhar pela ilha. No interior do presídio, quando viu a primeira cela do corredor à esquerda, chorou. Lairton Galaschi Ripoll, 72 anos, jornalista aposentado e sobrinho-neto da poeta Lila Ripoll, esteve preso ali durante cinco dias, em outubro de 1965.
      – Passa na retina tudo o que aconteceu. Na época, eu tinha 25, 26 anos, estava na flor da juventude. Ainda não tinha visto tortura. Eles nos colocavam em um tonel cheio de fezes, com um saco de linhagem na cabeça, e também nos obrigavam a mergulhar no Guaíba gelado à noite – relembra.
      Sobre Viúvas, a imagem será outra:
      – Não pode ter algo mais bonito, com profundidade e conteúdo sociológico.
      Ainda houve tempo para avistar um rosto conhecido na volta do barco. Era o ex-deputado estadual e ex-chefe da Casa Civil do governo Yeda Crusius, Cezar Busatto. Ao lado da mulher, Busatto observa:
      – Achei genial eles terem conseguido escolher esse lugar, porque se não fosse em um ambiente assim a peça não teria essa carga, essa força.
      O barco atraca. No ônibus de volta ao Gasômetro, silêncio. Ninguém esquecerá tão cedo o que aconteceu naquela ilha.

Confira abaixo relato escrito por Lairton Galaschi Ripoll, um dos espectadores da estreia da peça, que esteve encarcerado como preso político na Ilha do Presídio:

       “Existe uma enorme diferença entre  os anos de 1965, quando fui conduzido algemado num barco a motor, permanecendo cinco dias completamente isolado e com sessões de tortura tipo “afogamento”. Em um tambor de óleo com água podre, urina, fezes e outros detritos, mergulhavam minha cabeça encapuzada com um saco de linhagem várias vezes, me obrigando a revelar o sonho de um jovem idealista e nacionalista. Posteriormente, me deixavam uma tarde inteira sem tomar banho. O cheiro era insuportável. À noite, era obrigado a tomar banho no rio Guaíba.
      Mas voltei à Ilha do Presídio 45 anos depois, levado pelo barco Martin Pescador, com aproximadamente 50 convidados, numa alegria constante e saboreando um vento gostoso do rio Guaíba e também pela vontade de reconhecer a antiga Ilha da Pólvora, pela inusitada e não convencional ideia da  Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz de apresentar e encenar a peça teatral Viúvas, Performance sobre a Ausência – Trabalho em Andamento. Comovente foi sua apresentação em vários locais da ilha, iluminação e música perfeitas e uma interação entre atores e público.
      Mas a carga emocional de quem já foi “hóspede oficial” do presídio em 1965 foi enorme. A emoção ao visitar a cela 1, em cujo corredor se desenrolava a peça teatral, ultrapassou  o limite emocional e lágrimas surgiram na retina de meus olhos. Outros presos políticos devem visitar os “novos habitantes temporários da ilha” até o dia 29 de janeiro.
      Vamos lutar pela  revitalização da Ilha do Presídio. Projetos ambientais, culturais e turísticos devem ser analisados profundamente pelos órgãos governamentais. A ilha não pode ser esquecida. Ela é um patrimônio histórico do Rio Grande do Sul. A encenação teatral, tenho certeza, caiu ao agrado do público. Sucesso garantido neste ano de 2011.”
Os 48 espectadores embarcam, na Zona Sul de Porto Alegre, às 20h20min
Tempo de viagem até a Ilha das Pedras Brancas é de 25min
Espectadora acompanha a chegada na Ilha
Tânia Farias interpreta Sofia, uma mulher que perdeu pai, marido e dois filhos
Considerada louca por outras mulheres, Sofia (Tânia Farias) é uma voz contra o esquecimento
Personagens remetem aos engravatados que lideraram ditaduras na América Latina
Personagens capitão (Paulo Flores), ao fundo, e militar (Clélio Cardoso) recebem o público em terra firme
Público acompanha as primeiras cenas
Na peça, militar carrega um corpo em direção ao presídio
Sofia (Tânia Farias) conta aos netos (Caroline Vetori e Eduardo Cardoso) histórias ancestrais
Na peça, militares se dirigem às mulheres do povo que perderam seus homens
Sofia (Tânia Farias) carrega quatro cadeiras nas costas, lembrando do pai, do marido e dos dois filhos desaparecidos
Espetáculo é apresentado em meio às ruínas do presídio, desativado definitivamente em 1983
Na parte de dentro do presídio desativado, personagens trabalham com o milho
Espetáculo cria imagens poderosas como a da chuva de milho
Sofia (Tânia Farias) relata cenas de seu passado
Personagens cantam em lembrança dos homens desaparecidos do povoado
No final do espetáculo, as cadeiras que lembram os personagens desaparecidos são tomadas por chamas

Zero Hora - 21/01/2011
Por Fábio Prikladnicki
Fotos: Adriana Franciosi

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