domingo, 28 de novembro de 2010

Ilha do Presídio: projeto busca salvar parte da história gaúcha que naufraga no Guaíba

      Uma parte da história do Rio Grande do Sul que naufraga aos poucos no meio do Guaíba ainda pode ser salva. A Ilha do Presídio, que foi depósito de pólvora nos tempos do Império e já se chamou das Pedras Brancas, serviu como laboratório de pesquisa da peste suína na década de 1950 e hospedou prisioneiros a partir de 1956, completou no mês passado 26 anos de abandono. Em 4 de abril de 1983, o governador Jair Soares mandou fechar a prisão. Desde então, a área, de 4,5 mil metros quadrados, foi tomada pela vegetação e virou alvo de vândalos e pichadores. Agora, surge uma chance para resgatar esse patrimônio.
       A boia de salvamento pode vir na forma de um projeto de R$ 2,5 milhões, de autoria da Associação Amigos do Meio Ambiente (AMA), entidade ambientalista de Guaíba com duas décadas de atuação, em parceria com os arquitetos Reginaldo Lacerda e Mauro Ayres. O valor pagaria a restauração dos prédios, a colocação de passarelas suspensas para a circulação de visitantes e a criação de um memorial sobre a utilização da ilha ao longo do tempo.
       Para tanto, é necessário um investidor, pelo qual buscam a AMA e a prefeitura de Guaíba, município ao qual foi cedido pelo governo do Estado, em 25 de janeiro de 2006, o direito de uso da ilha. O convênio vale por cinco anos, segundo a Secretaria Estadual de Turismo. O titular da pasta, José Heitor de Souza Gularte, promete fazer uma reunião com a prefeitura de Guaíba para conferir o andamento do projeto. Existe um investidor em potencial, que pede para seu nome não ser divulgado.
       Enquanto isso, porém, o prazo de cedência ao município se esgota aos poucos, feito conta-gotas. O lugar onde aguardarampela liberdade presos políticos como o ex-prefeito da Capital Raul Pont, o ex-deputado estadual Carlos Araujo e o juiz João Carlos de Bona Garcia, durante a ditadura militar (1964-1985), espera que lhe dêem um destino. Não submergirá fisicamente, como um Titanic de pedra, apesar de estar há anos à deriva. Mas o que aconteceu por lá, sim, dia a dia se esvanece, chapinhado pela água do Guaíba.

Passeios aos domingos
       Neste meio-tempo, a Secretaria de Turismo de Guaíba tem a intenção de fazer viagens de barco até a ilha.
       - A princípio, um domingo por mês nós vamos fazer esse passeio. Nem a comunidade de Guaíba nem a de Porto Alegre conhece a ilha. O pessoal tem uma curiosidade imensa - relata a secretária.
       Para os barqueiros que volta e meia transportam interessados até a região, seria um bom negócio. Há cinco anos nessa função, Reinaldo Fraga se anima ao falar sobre o assunto. Ele calcula já ter levado 500 estudantes, incluindo universitários da PUCRS e da UFRGS.
       - As crianças adoram. Elas contam para os pais e aí são eles que vêm depois - destaca.

Ideias mirabolantes
       A simples existência de um regramento para a ilha, contido no acordo entre o Estado e Guaíba, serve para ao menos afastar outras ideias, um tanto mirabolantes, que surgiram para dar utilidade ao local. Conforme o coordenador do projeto e dirigente da AMA Jarbas Cruz, houve empresário querendo instalar motel, ONG com convicção de que uma gigantesca estátua de Bento Gonçalves apontando para Porto Alegre seria um marco para lembrar a Revolução Farroupilha e alguém com criatividade suficiente para propor a instalação da maior bandeira do Rio Grande do Sul e do mundo, algo para entrar no Livro Guinness dos Recordes. Enquanto o termo de cessão da ilha a Guaíba permite o uso, como contrapartida há uma cláusula que torna responsabilidade do município "o zelo, a guarda e a conservação" do lugar, salienta Gularte.

Marcas do esquecimento
       Os restos das barras de ferro ainda são visíveis na entrada da prisão. Nos dois extremos da ilha, também conhecida como Pedras Brancas, duas guaritas continuam em pé, apesar de quebradas. As pichações espalhadas lembram a todo momento datas recentes marcadas a tinta. Contrastam com o clima passadista e austero da prisão, ainda claramente identificável, com suas paredes grossas, grades deterioradas e minúsculas janelas no teto das 10 celas.
       Agora há silêncio entre aquelas paredes, quebrado unicamente pelo som do vento e da água batendo nas pedras. Um poço fedorento e esquecido em meio à vegetação parece ter acumulado tristezas, e não desejos, de prisioneiros que conviviam com falta de higiene, espaço, água e comida, e excesso de sujeira, piolhos e muquiranas. Outro inimigo eram as cheias do Guaíba, que lotavam a cadeia de água.
       Na penumbra das celas, sem nada para fazer, uma centena de homens aglomerados pensava a toda hora em fugir. E as fugas ocorriam. Uma delas foi a do apenado Julio de Castilhos Pitinelli, que escapou boiando em duas panelas, em 1983.
       Sem plano de fuga, a tática era obter uma sensação efêmera de liberdade: ir para a enfermaria, de acordo com relato do próprio Pitinelli, entrevistado por Zero Hora no ano de sua fuga histórica. A técnica para se machucar era colocar o braço apoiado em dois tamancos, calçado que utilizavam. Aí, um companheiro de cela pulava no meio. O membro se quebrava.

Histórias da ditadura
       Durante a ditadura, o sistema na ilha funcionava em paralelo com os presídios em terra. O procedimento com os presos políticos era enviá-los periodicamente ao Departamento de Ordem Política e Social (Dops) da Capital, onde passavam por interrogatórios e torturas, conforme o livro Ilha do Presídio - Uma Reportagem de Ideias.
       A obra conta que havia duas mulheres na prisão. Eram o pôster da atriz Jane Fonda, venerada por seu engajamento político antiamericano, e a foto da militante gaúcha Ignez Maria Serpa, conhecida como Martinha. Só essas duas estampas eram permitidas no local - nada de fotos de mulheres peladas, comuns nos cárceres.
       Martinha era folclórica entre os militantes. Passou quase um ano e meio confinada em uma solitária na Penitenciária Feminina Madre Pelletier. A sua beleza conquistou até mesmo policias militares, que passaram a servir de intermediários na troca de correspondências entre ela e presos políticos da ilha.
       O dia-a-dia na prisão era preenchido muitas vezes com aulas de filosofia, matemática, francês, biologia, inglês, história e até caratê, dadas aos prisioneiros por colegas de cela. Às vezes, os guardas suspendiam as lições, com receio de que fossem uma transmissão em código de informações da guerrilha.
       Também se lia Karl Marx e outros livros "proibidos" que entravam na cadeia pelas mãos de familiares com as capas trocadas. Passavam, já que o conteúdo não era verificado.
       O tempo também corria mais rápido com jogos de xadrez e cartas. Entretanto, a aparente tranquilidade escondia a tensão de saber que havia agentes da ditadura infiltrados no grupo de detentos. Era assim, por exemplo, que planos de fugas eram descobertos.

Cronologia
1857 - A Quarta Casa de Pólvora é construída pelo exército imperial
1930 - A ilha é abandonada pelos militares
Década de 1950 - Passa a funcionar como laboratório de pesquisa para desenvolvimento de vacina contra a peste suína, que atormentava criadores de porcos no Estado
1956 - A ilha é transformada em presídio
1964 - Com a ditadura militar, presos políticos passam a ser enviados à ilha
1972 - Raul Pont e Carlos Araujo são transferidos para a ilha
1973 - A prisão é desativada pela primeira vez, após a morte de Eduardo Alves da Silva, um ladrão de automóveis preso irregularmente
1980 - O sequestro do cardeal dom Vicente Scherer motiva a reativação do presídio pelo governador Amaral de Souza
Abril de 1981 - Comissão de direitos humanos vistoria o local, após denúncias de maus-tratos a presos
6 de setembro de 1981 - O estelionatário Jardelino de Barros foge da ilha de caiaque
25 de fevereiro de 1982 - O veleiro do juiz Monte Lopes é metralhado por guardas que suspeitaram ser uma tentativa de ataque à ilha
18 de setembro de 1982 - Os traficantes João Carlos Faleiro e Hector Martins Thomaz morrem afogados durante fuga
1983 - Julio de Castilhos Pitinelli foge boiando no Guaíba em duas panelas
4 de abril de 1983 - O governador Jair Soares manda fechar a prisão
8 de abril de 1983 - A administração da ilha é passada da Secretaria de Segurança para a de Turismo
2006 - O município de Guaíba obtém a autorização para explorar a ilha.

O exemplo estrangeiro
       Há vários exemplos de ilhas-presídio que se tornaram pontos turísticos importantes e preservados. Um deles fica em Marselha, na França. A prisão da Ilha D'If foi construída entre 1524 e 1531. Serviu de inspiração para o escritor Alexandre Dumas, que usou o local como palco para o romance O Conde de Montecristo. No século 19, a prisão foi fechada, reabrindo em 1890 como museu. Hoje, é passeio obrigatório para quem viaja à cidade do sul francês.
       Mais conhecida é a prisão de Alcatraz, na Califórnia (Estados Unidos), que operou entre 1934 e 1963 e encarcerou o chefão da máfia Al Capone. Virou parque nacional em 1972. Anualmente, recebe 1,3 milhão de turistas.

Reportagem publicada no jornal Zero-Hora de 31/05/2009.
Por André Mags - andre.mags@zerohora.com.br

 


Ilha fica no Guaíba, entre o município de mesmo nome e a Capital
Prédio da prisão está abandonado e vandalizado
Abandono é comprovado pelo avanço da vegetação sobre as construções
Grossas paredes da prisão não resistiram às décadas de esquecimento
Antiga sala da guarda está tomada por pichações e parte da parede foi demolida
Guarita depredada pode ser alcançada por uma corda
Primeira utilização da ilha foi para guardar pólvora
Local funcionou também como laboratório de pesquisa da peste suína
Acesso à ilha é possível por meio de barcos

Prisão começou a funcionar em 1956
Últimos prisioneiros deixaram a ilha em 1983


Associação Amigos do Meio Ambiente tem projeto para recuperação da área
Fotos: Ronaldo Bernardi e banco de dados Zero-Hora


Memórias da Ilha do Presídio


Duração: 03:43
Autor: Zero Hora
Publicado em: 30/05/09

O ex-prefeito de Porto Alegre Raul Pont e o ex-detento Adão José Paiva contam memórias da Ilha do Presídio.

Fonte: Vídeo Zero-Hora

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